Sobre o ente e seus significados | Diego Másio, O.P. [Tradução]

Tradução parcial da obra Metaphysica disputatio de ente et eius proprietatibus (lib. I, c. III), do R.P. Diego Másio, O.P. A edição usada como base foi a de Valência, 1587, que pode ser acessada clicando aqui. Nossa tradução em formato bilíngue, com poucas alterações do texto latino, pode ser acessada aqui.

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LIVRO I

SOBRE O ENTE

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Capítulo III
Sobre o ente e seus significados

            Tendo, nos capítulos anteriores, estabelecido o que são e qual o número dos transcendentais, trataremos de cada um detalhada e separadamente, no que observaremos a seguinte ordem: em primeiro lugar, disputaremos a respeito do ente (ens), depois do uno, do verdadeiro e, por fim, do bem. Começaremos, pois, pelo nome ente. “Ente”, assim como “essência”, é um nome latino, e não deve ser desprezado como bárbaro se crermos no que Quintiliano diz no livro VIII das Institutiones oratiorias, c. III. Embora tais nomes não tenham sido usados frequentemente pelos antigos latinos, é absolutamente certo retê-los como tais, haja que os posteriores fazem uso desses nomes como latinos. Mas é possível, conforme o uso e costume dos filósofos, obter nomes latinos a partir de nomes bárbaros e, por outro lado obter nomes bárbaros a partir de nomes latinos. Entre os antigos, frequentemente os nomes não significam o mesmo que parecem significar nos posteriores, como acuradamente expôs Rodolfo Agricola no livro I De Inventione, c. XXIII. Horácio elegantemente cantou nestes versos da Ars Poetica (II d 68-72):

…perecerão as obras mortais,
nem manter-se-ão a honra e a graça vivaz das línguas.
Renascerão muitas das que caíram, e as que
agora estão com honra decairão se assim quiser o uso,
em cujo poder se fazem juízo e direito e norma da fala.

            Não posso, com efeito, suportar a arrogância de alguns homens inoportunos que, tendo apenas tocado com os lábios os primeiros elementos da Filosofia, tendo perambulado longo tempo nas escolas dos Gramáticos como velhos senis e desdentados, igual a censores severos embora injustos que desprazavam e rechaçavam audaciosamente a estas palavras: “causalidade”, “identidade”, “realidade”, “hecceidade”, “universal”, cognoscível e tantas outras usadas por notáveis filósofos. De fato, estes, como os que odeiam à Filosofia, e ignorantes das artes mais notáveis, hão de ser rechaçados do grupo dos Filósofos como senis do que ter algum valor seus juízos frívolos. Basta de falar sobre estes. Voltemos, pois, ao nosso interrompido tratado sobre o ente. A fim de melhor examinarmo-lo, é necessário recordar brevemente algumas coisas sobre o que significam os nomes concretos e abstratos.

            Entre os nomes, alguns significam naturezas concretas, e outros exprimem naturezas abstratas. Os nomes concretos são aqueles que significam formas ligadas a um sujeito, como cândido, luminoso, homem; e abstratos os que significam formas depuradas de todo sujeito (enquanto significam-se com esses nomes), como candor, luz, humanidade. Entre eles há três diferenças principais. Primeira: os abstratos são tais por eles mesmos, e os concretos são tais pelos abstratos, como a brancura é ela mesma brancura, e o branco se diz tal em virtude da brancura. Segunda: os abstratos são parte dos concretos, ao passo que os concretos são certas totalidades com respeito aos abstratos, como humanidade é uma parte do homem, e o homem é um todo [i.e. uma totalidade] com respeito à humanidade. Terceira: os abstratos não contém nenhuma mescla de outra natureza, senão que significam uma natureza pura e sem mescla, como a brancura somente denota a brancura sem mais, ao passo que os concretos significam uma natureza impura, unida a vários acidentes, como calor, frio, doçura e outros. Com efeito, sendo “ente” um nome concreto e “ser” o seu abstrato, estas mesmas diferenças que existem entre concretos e abstratos se dão também entre o ente e o mesmo ser, como Severino Boécio propôs rigorosamente no opúsculo De Hebdomadibus, ao qual foram feitos comentários muito eruditos por Santo Tomás. Em primeiro lugar, o ser, que é abstrato, é tal por si mesmo, pois não tem [seu] ser recebido de outro, senão que o tem em si mesmo. Ente, por outro lado, consiste e é por si mesmo participação do mesmo ser. Em segundo lugar, o ser é sempre certa parte do ente, e o ente é uma certa totalidade com respeito do ser, pois se compõe da forma do ser e do sujeito que é. Com efeito, o ente possui muitíssimas coisas completamente distintas da sua natureza, como o ser ou a essência do homem [i.e., a humanidade] compreende somente sua natureza, sem mescla, ao passo que o homem, que é o que é, contém muitos acidentes absolutamente distintos da sua natureza.

            Tendo, pois, explicado essas coisas sobre o ente e o ser, seu [correlato] abstrato, segue que declararemos o que significa o mesmo ser, pelo qual o ente é o que é. São, pois, muitos os homens eruditos que consideram que o ser que se exprime com o nome de ente somente denota a existência, e de maneira alguma [denota] a essência, opinião essa abraçada por todos aqueles que sustentam que coisa é um transcendental distinto de ente. Com efeito, [estes] ensinam que ser significa a existência, e coisa [significa] a essência, sentença essa que agradou ao mestre Soto, no capítulo IV das Antecategoriarum, q. I, na solução da terceira razão. Outros, como Durando no lib. I das Sententiarum, dist. VIII, q. II ad 6, o Arcebispo de Sevilha[1] no mesmo lugar, q. I, e Fillipo Mocênico, nas suas Institutiones, na contemplação III, parte I, cap. II, por sua vez, consideram que ente significa somente a essência.

            Mas para que possamos explicar a verdadeira sentença sobre esse assunto, deve-se advertir, em primeiro lugar, que nos nomes uma coisa é aquilo do qual o nome vem imposto, e outra é aquilo que se quer significar ao impor o nome, como observa S. Tomás em distintos lugares. Como se pode ver no exemplo bastante comum do nome lapis: aquilo do qual o nome foi imposto é a lesão do pé [2], mas aquilo pelo qual se impôs esse nome para significar não é a lesão, mas a substância corpórea inanimada.

            Além disso, advertimos que o nome de ente pode ser tomado de dois modos: como particípio do verbo substantivo sum, que denota o mesmo que existente; ou então como nome substantivo do mesmo verbo, cuja razão significa aquilo que tem natureza e essência, como a palavra “vivente” [que], de igual modo, pode ser tomada como particípio presente do verbo viver, pelo que significa o ato de viver, não a essência do vivente, e se opõe a morto; ou então é um nome substantivo do mesmo verbo, que significa, assim, a essência do vivente e estaria sob a categoria de substância como atributo essencial compreendido imediatamente sob corpo: e esta é aquela tão repetida divisão do ente entre ente assumido nominalmente e [assumido] participialmente, que frequentemente lemos em Caetano, no Ferrariense e noutros importantíssimos filósofos. Com efeito, podendo-se tomar o ente desses dois modos, se se toma segundo a imposição do nome, isto é, por aquilo d’onde vem sua imposição, significa somente o ato de existir, pois a partir dele foi aplicada a palavra ser às coisas, do mesmo modo como foram atribuídos os atos às mesmas coisas existentes, e como o movimento, como disse Aristóteles no livro IX da Metafísica, cap. III. Mas segundo aquilo para cujo significado é aplicado o nome, ser significará não apenas a existência, senão também a essência. Pelo que com o nome de ente se significarão tanto a essência como a existência, o que podemos confirmar com os testemunhos de Aristóteles e Santo Tomás, os quais ensinam em muitos lugares que algumas vezes ente significa a essência e noutras a existência. Em Aristóteles diferem, pois ente expresso no caso acusativo significa a existência, mas expresso no caso dativo significa a essência, como pode ser constatado nestes dois lugares, o primeiro dos quais é tomado do livro III De Anima, cap. IV, onde diz: “uma coisa é a ‘magnitudinem esse’, e outra a ‘magnitudini esse’”, isto é, a primeira é a existência e a segunda é a essência da magnitude. O segundo é tomado do livro VII da Metafísica, cap. VI, onde diz que uma coisa é “bono esse” e outra “bonum esse”, isto é, uma é a essência e outra a existência do bem. Passando agora para Santo Tomás, é certíssimo que nele ente significa a existência, como se pode ver em inumeráveis passagens suas. Mas que significa essência, o que é mais duvidoso nele, podemos defendê-lo pela II Quodlibeta, q. II, art. 1; De Malo, q. I, art. 1 ao penúltimo argumento; De Veritate, q. XXI, art. 1 ad 1, e art. 4 ad 4; lugares em que professa com bastante clareza que ente significa a essência e natureza de todas as coisas, expressa na definição essencial.

            Ademais, confirmamos [pelo seguinte argumento] que ente não somente significa somente a existência, senão também a essência: todas as ciências tratam ou do ente em geral, como a Filosofia Primeira, ou de alguma parte do ente, como as ciências particulares, segundo Aristóteles no livro IV da Metafísica, cap. I, dado que as ciências não tratam de coisas existentes, e pouco se preocupam se seus [respectivos] objetos existem ou não por parte da coisa, porque as ciências somente tratam de objetos perpétuos, ao passo que as existências das coisas não são perpétuas, já que algumas vezes existem e outras não. Portanto, ente não significará somente a existência, mas também a essência.

            Por outro lado, como ente pode ser tomado ou como particípio ou como nome, segundo esse princípio significará estas duas coisas: o ente como particípio significa a existência e o ente como nome substantivo significa a essência; e desse modo, o ser, que é o [correlato] abstrato do ente, se se usa como abstrato do ente tomado segundo a razão pela qual é particípio, será o mesmo que a existência; se, por outro lado, se usa como [correlato] abstrato do ente segundo a razão pela qual é nome, será o mesmo que essência.

            Se alguém nos opõe a autoridade de Aristóteles, a partir do livro II De demonst., cap. VII, [dizendo] que o ente não é um atributo essencial, nem significa a essência, mas a existência, responder-se-á que Aristóteles falava do ente [considerado] participialmente, que significa somente a existência, pois naquele lugar falava do ente que se conclui do sujeito por demonstração, o qual não é outra coisa que a existência de uma propriedade no sujeito, visto que concluímos por demonstração a união atual de uma propriedade com o sujeito, união essa que consiste na existência natural das propriedades e os acidentes, como mostramos noutro lugar.

            Adverte também Pico della Mirandola, no opúsculo De Ente et Uno, cap. VI, que há dois significados de ente: um em sentido lato, pelo qual ente significa tudo o que não é nada, e outro mais preciso, pelo qual se significa aquilo que é. Se se toma o ente no primeiro sentido, não há um termo médio entre ele e o nada, pelo que é verdadeiro aquele adágio da Metafísica, [segundo o qual] de qualquer coisa, é verdadeira é ou a afirmação, ou a negação, mas nunca ambas, ou é impossível que uma mesma coisa seja e não seja ao mesmo tempo. Se se lo toma no segundo sentido, há um termo médio entre o ente e o nada, a saber, o mesmo ser abstrato, que não é [um puro] nada, como é claro, nem é ente, porque o ser não é aquilo que é, mas aquilo por meio do qual alguma coisa é, como explica acuradamente Severino Boécio no opúsculo De hebdomadibus nessas palavras: é distinto o ser e aquilo que é, porque o mesmo ser não é, mas o que é consiste em si e é ao receber a forma de ser. Assim como a brancura não é branca, senão aquilo pelo qual a neve é branca, e como a justiça não é justa, senão aquilo pelo qual o homem é justo, da mesma maneira o ser não é aquilo que é, mas aquilo pelo qual alguma coisa é; pelo que, tomado ente nesse sentido, aquele enunciado não seria verdadeiro.

          Mas alguém dirá contra isto: tudo aquilo que não é ente é, pois, não-ente. Ora, se o ser abstrato não é ente, então será não-ente, e o que é não-ente, é nada. Portanto, o ser abstrato é nada. Para satisfazer esta dúvida, será preciso observar que alguns atributos podem ser negados de algum sujeito de dois modos: primeiro, dado que as noções dos atributos não podem convir a estes sujeitos de modo algum, negamos a brancura do negro e o frio do calor, pois não pode convir nem a razão do negro à da brancura, nem a do frio à do calor. Segundo, porque as noções dos atributos encontram-se no sujeito de modo mais nobre do que significam através do nome de atributo, negamos que a brancura seja branca, não porque a brancura é negra, mas porque a razão da brancura encontra-se de modo mais nobre na brancura abstrata do que do branco concreto, razão por que negamos o ente do ser, não porque o ser é não-ente, mas porque a razão de ente se diz de modo muito mais nobre do ser abstrato do que como pode ser dita de um ente concreto [3].


Referências e notas

[1] N.T.: Refere-se aqui a Diego Deza (1444-1523), autor das Novarum deffensionum doctrinae Angelici Doctoris D. Thomae.
[2] N.T.: Lapis, em latim, significa pedra. Diego mostra que esse nome, lapis, deriva de laesio pedis (em português, lesão do pé).
[3] N.T.: Esta última parte do texto encerra uma clara contradição, provavelmente por alguma imprecisão na sua edição. Pode-se corrigi-la assumindo o princípio enunciado no começo da segunda parte do parágrafo, segundo o qual os correlatos atuais dos nomes concretos são mais nobres que os dos nomes abstratos: “…negamos que a brancura seja branca, não porque a brancura é negra, mas porque a razão da brancura encontra-se de modo mais nobre no branco concreto que na brancura abstrata, razão por que negamos o nome ente do ser, não porque o ser é não-ente, mas porque a razão de ente se diz de modo muito mais nobre do ente concreto do que como pode ser dita do ser abstrato”.

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